A integração da inteligência artificial (IA) na prática médica já é uma realidade e impõe uma transformação urgente na forma como formamos nossos médicos. Com promessas de diagnósticos mais precisos, terapias personalizadas e otimização de processos, a IA não apenas modifica a medicina — ela a redefine. Para que esses avanços resultem em benefícios reais, é essencial que os médicos estejam preparados para utilizar essas tecnologias com eficácia e ética.
O Médico do Futuro: Tech-Enabled e Humanista
Discutir o futuro da educação médica vai além de aprimorar a literacia em IA. É necessário reformular o currículo de forma abrangente, expandindo as capacidades dos médicos, integrando competências tecnológicas de forma transversal e, ao mesmo tempo, renovando o foco nos aspectos mais humanos da prática médica.
O médico do amanhã deve ser um “profissional aprimorado pela tecnologia” e, simultaneamente, um verdadeiro humanista. A medicina é mais do que diagnosticar doenças ou prescrever tratamentos: é compreender a experiência humana da enfermidade e estabelecer conexões profundas com os pacientes. A ascensão da IA não deve desumanizar a medicina — ao contrário, deve libertar o médico de tarefas repetitivas e burocráticas, permitindo que dedique mais tempo à comunicação empática e ao cuidado relacional.
A IA é uma aliada poderosa nos diagnósticos por imagem, na previsão de desfechos clínicos e na elaboração de planos terapêuticos, permitindo ao médico focar na tomada de decisões complexas e na escuta ativa do paciente.
Desafios e Imperativos para a Transformação
Apesar do potencial promissor, a incorporação da IA na medicina apresenta desafios relevantes que devem ser enfrentados de forma proativa:
- Qualidade e Viés dos Dados: A IA depende de dados de qualidade. Se forem incompletos, imprecisos ou enviesados, os algoritmos podem reforçar desigualdades existentes. É fundamental garantir dados representativos da diversidade populacional e criar mecanismos eficazes de identificação e mitigação de vieses.
- Transparência e Explicabilidade (“Caixa Preta”): Muitos algoritmos funcionam como “caixas-pretas”, dificultando a compreensão clínica de suas recomendações. Embora a interpretabilidade nem sempre seja essencial para a utilidade do modelo, a confiança do profissional e a possibilidade de intervenção em caso de erro exigem um grau mínimo de compreensão.
- Privacidade e Consentimento: A coleta massiva de dados sensíveis levanta sérias preocupações sobre privacidade. As legislações atuais, como a LGPD, embora essenciais, não cobrem totalmente os desafios da reidentificação de dados ou do uso secundário. O modelo de consentimento precisa ser reformulado, com foco em clareza e proteção contínua.
- Responsabilidade Legal: Ainda não há clareza sobre quem é responsável legalmente por erros decorrentes de decisões baseadas em IA. A opacidade dos algoritmos dificulta a atribuição de responsabilidades e, paradoxalmente, pode até desincentivar a transparência.
- Impacto na Força de Trabalho e Habilidades Clínicas: A IA não substituirá os médicos, mas transformará profundamente seu papel. O risco de “atrofia de competências” é real se houver dependência excessiva. A formação médica deve preservar e reforçar habilidades clínicas fundamentais, mesmo com o suporte tecnológico.
Um Roteiro de Ação para o Brasil
Diante desse cenário, as escolas médicas brasileiras têm um papel estratégico. É hora de liderar a transformação com medidas concretas:
- Reformulação Curricular Abrangente e Transversal
- Integração da IA e Ciência de Dados: A IA não deve ser uma disciplina isolada, mas estar presente desde o início da graduação até a residência médica. Os estudantes devem aprender conceitos de ciência de dados, aprendizado de máquina e suas aplicações em diagnóstico, terapêutica, gestão populacional e pesquisa.
- Foco em Pensamento Crítico e Julgamento Clínico: É essencial reforçar a capacidade de análise crítica e julgamento ético. Casos clínicos complexos, debates interdisciplinares e simulações com IA devem compor o currículo para treinar médicos aptos a avaliar, questionar e aplicar as informações de forma contextualizada.
- Valorização das Habilidades Humanas: Empatia, escuta ativa, compaixão e comunicação são atributos insubstituíveis. A formação médica deve reafirmar esses pilares como habilidades centrais e permanentes.
- Definição e Padronização de Competências em IA
- Competências Essenciais para Todos os Médicos: É necessário definir um conjunto mínimo de habilidades em IA que todo egresso da medicina deve possuir, tanto em literacia tecnológica quanto em consciência ética, jurídica e social.
- Especialização e Educação Continuada: Além da formação geral, cada especialidade deve considerar competências específicas em IA. A educação médica continuada será vital para acompanhar os avanços e integrar novas soluções à prática.
- Governança Ética e Regulamentar
- Transparência e Responsabilidade: É urgente estabelecer diretrizes claras sobre os dados utilizados nos treinamentos, desempenho dos algoritmos e atribuição de responsabilidade em caso de erro.
- Combate ao Viés e Promoção da Equidade: A implementação da IA deve ser orientada pelo compromisso com a equidade. Dados diversos e medidas de correção de viés devem ser exigência mínima. A adoção do conceito de “Quintuple Aim”, que inclui inclusão e justiça, é fundamental.
- Privacidade e Proteção de Dados: A proteção de dados deve ir além do consentimento formal. É necessário adotar práticas como “privacidade por design” e “engenharia de privacidade” como padrão na saúde digital.
- Conselhos de Ética em Educação Médica: Assim como os Comitês de Ética em Pesquisa, é pertinente a criação de conselhos que monitorem e orientem a integração ética da IA no ensino.
- Pesquisa e Avaliação de Impacto
- Estudos de Longo Prazo: Devem ser priorizadas pesquisas que avaliem os efeitos da IA não apenas na formação médica, mas também nos desfechos de saúde, na satisfação dos pacientes e no comportamento clínico dos profissionais.
- Colaboração Multidisciplinar: Incentivar parcerias entre universidades, hospitais, empresas e centros de pesquisa é fundamental para gerar soluções integradas e aplicáveis, além de promover a troca de experiências e boas práticas.
Conclusão
A inteligência artificial não é uma ameaça à essência da medicina, mas uma aliada que, bem empregada, pode amplificar a humanidade no cuidado. O maior desafio — e também a principal oportunidade — das escolas médicas no Brasil é formar uma nova geração de médicos: profissionais que dominem os algoritmos sem perder a empatia, liderando um futuro da saúde mais tecnológico, mas também mais humano.
Mário Rodrigues Montemór Netto
Médico Patologista.
Professor do Curso de Medicina da UEPG.
Presidente da AMPG.
Wagner Gil Denck
Economista.
Gestor da AMPG
Referências:
- Jong, Michelle. “Transforming medical education in the AI era: Balancing technological expertise with humanistic care in tomorrow’s doctors.”
- Gordon, Morris, et al. “A scoping review of artificial intelligence in medical education: BEME Guide No. 84.” Medical Teacher, 2024.
- Matheny, Michael, et al. “Artificial Intelligence in Health Care: The Hope, the Hype, the Promise, the Peril.” The National Academies Press, 2022.
- Fornasier, Mateus de Oliveira. “The use of AI in digital health services and privacy regulation in GDPR and LGPD: Between revolution and (dis)respect.” Revista de Informação Legislativa: RIL, 2022.
- Gehrman, Elizabeth. “How Generative AI Is Transforming Medical Education.” Harvard Medical School, Autumn 2024.